Meridianos & Paralelos
Um blog de notícias alinhavadas quase sempre à margem das notícias alinhadas
quinta-feira, agosto 26, 2004
IMPERDÍVEL MILAGRE
«O Milagre Segundo Salomé» do realizador português, Mário Barroso, é candidato à nomeação para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. Volto a editar agora, aqui, o que publiquei a 29 de Maio deste ano, a propósito desta obra.
Em Lisboa estreou há poucos dias um filme que a febre só hoje me permitiu ir ver. Fico no escuro da sala a pensar que gostava de partilhar este filme convosco. E não resisto a sugeri-lo aqui porque é na verdade um dos mais belos filmes que me recordo de ter visto acontecer ultimamente ao cinema português. Simplesmente não sei como falar-vos dele!... Como contar-vos disso que flui e narra o irrepreensível olho realizador diante de mim?...
Apontado ao meio, este é um filme com histórias e personagens. A reconstituição histórica é magnífica. A interpretação é soberba. Mas, na verdade, aquilo que me deslumbra está para além disso e, sem vos ter ao meu lado na escuridão da sala, não estou bem certa de saber contar-vos o que é.
Talvez seja a inusitada coincidência que faz de Salomé, tesouro bem guardado de um bordel de Lisboa, chegar-se à janela para ver passar a procissão e alguém se dar conta da inquietante semelhança entre o seu rosto e a estátua da Virgem que segue no andor. Talvez seja essa subtileza de começar a contar uma história pela banal casualidade de uma semelhança singelamente ousada de heresias. Talvez seja o correr do enredo e esse delicioso ambiente de ambiguidades perturbantes, por onde se me erguem perplexidades e questões sem fim. Talvez seja o retrato agri-doce de um Portugal anterior, às voltas com a mesma actual promiscuidade entre a política e os outros poderes, no caso o religioso. Talvez seja esse contínuo ir e vir do brejeiro à tragédia, da comédia de boulevard ao drama e ao melodrama, dos corpos às almas, do profano ao sagrado. Ou talvez seja apenas o belo tornado visível na admirável caminhada para o milagre.
No escuro da sala, sem vos ter ao meu lado diante do filme, vou pensando que aqui tudo está no lugar certo, sem que o lugar certo seja necessariamente o lugar óbvio. Porque este filme não parece vir de nenhum lugar reconhecível. O que aqui está é, aos meus olhos evidentemente (faça-se a ressalva!..), uma fita admirável de muito bom cinema. Só muito a espaços surge um filme assim, como este, que me devolve à rua com a sensação de ter feito um imenso favor a mim mesma quando me sentei no escuro da sala para o ver.
FICHA TÉCNICA
Argumento, adaptação e diálogos
CARLOS SABOGA
Baseado no romance de
JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS
Música de
BERNARDO SASSETTI
uma co-produção
MADRAGOA FILMES (Portugal)
GEMINI FILMS (França)
Com a participação de
ICAM Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimédia
RTP RADIOTELEVISÃO PORTUGUESA
Com o apoio de
Eurimages
Produzido por
Paulo Branco
Realização
Mário Barroso
Elenco
Ana Bandeira, Nicolau Breyner, Paulo Pires, Ricardo Pereira, Ana Padrão, João Didelet, Margarida Vilanova, Ana Zanatti
Portugal, 2003, Cor, 1:1,66, 97’, DOLBY SRD
O filme vai beber o vôo ao livro de José Rodrigues Miguéis. Dois volumes que são um grande fresco da sociedade lisboeta da época e da ambiência depressiva fruto da degradação dos sonhos republicanos, que de queda em queda sufocariam com o golpe de 28 de Maio de 1926. O boato sombrio de um Milagre acontecido em Fátima, lá para os lados ermos de uma tal Cova da Iría, volta a acordar o ideal monárquico de que uma única figura haveria de surgir do nevoeiro para tomar as rédeas do Império, o leme de um Portugal à deriva. É outra vez o piscar de olho à deposta figura do Rei, o Grande Homem, o Salvador da Pátria, metáfora a prometer a Ordem, a Tranquilidade, a Estabilidade, tudo convenientemente maiusculado como convém aos mitos. É o bota-abaixo da irrequieta República, moçoila garrida e descuidada que vai deixando cair sucessivos governos, enquanto a Grande Aranha urde a sua teia cinzenta onde em breve cairá a "Idade de Ouro"do futuro, que alimentava os sonhos de dias melhores.
No meio da teia da Grande Aranha, urde-se uma figura de Mulher, Salomé: profano nó que enreda as malhas em que ela própria se tornará sagrada presa.
Fica aqui a sugestão. Seja cinema , video ou DVD, não percam O Milagre... quando passar perto de vocês.